quinta-feira, junho 19, 2014

Estudante, vem devagar

Texto originalmente publicado na revista B - Cultura da Bicicleta nº7, de Junho 2013.
 
Ponte móvel em Roterdão, Holanda

Estudante, vem devagar
Uma história sobre como voltar de Erasmus sem dar por isso, atravessando a Europa de bicicleta.
 
O programa Erasmus que se popularizou nas últimas décadas tem dado a jovens universitários a possibilidade de viver até um ano fora do seu país e desfrutar da vida como se não houvesse ano seguinte. Filmes como A Residência Espanhola celebrizaram esse período quase sabático mostrando como é bom, por vezes, estar longe da família e das redes de proximidade, sentir-se livre e evitar confrontos constantes com o que é expectável de cada um. O Erasmus vem com prazo definido, para deixar claro desde o início que a vida louca e boa não durará para sempre, por mais que se tente prolongá-la um pouco mais. Foi enquanto tentava adiar o regresso que decidi voltar da Dinamarca em bicicleta, no verão de 2005. A história que aqui conto começa no fim desse ano vivido fora e é sobre um regresso demorado, cheio de pressa de viver.

Depois de 11 meses passados a absorver informação nova a um ritmo quase diário, o meu cérebro acabou por se habituar a esse frenesim e terá achado que seria um desperdício voltar de avião, perdendo a oportunidade de ver cá em baixo tudo o que existe entre aeroportos. Atravessar a Europa de bicicleta pareceu-me, então, a solução para os meus problemas. Havia feito dois anos antes uma travessia semelhante, aproveitando as vantagens de um outro programa europeu, o Interrail, e ficara-me a ideia de que a densidade habitacional deste continente deixava no terreno e na paisagem a sensação de quase nunca estarmos sozinhos ou isolados, fazendo desta travessia em solitário algo menor que uma aventura.

Estrada nacional na Dinamarca que segue até à fronteira com a Alemanha

A Europa não tem o exotismo de outras paragens, sobretudo para um europeu, mas atravessá-la de bicicleta, imbuído num espírito de união fraterna entre nações e povos irmãos, que à época estava muito em voga, transportava em si uma ideia de road trip num contexto que nunca se torna muito distante das nossas referências – tudo tem um termo de comparação relativamente fácil e imediato, tudo se assimila facilmente deixando o viajante disponível para outras aventuras que não esbarrem no primeiro e mais elementar desafio de interpretação cultural. Além disso, um ano passado em Erasmus faz-nos criar uma rede de amigos espalhados pelo continente e esta viagem serviu também para visitá-los nas suas cidades de origem.

Tenho que ser honesto: a viagem não foi ultra bem planeada, não era isso que procurava naquele momento. Em vez de rotas cuidadosamente estudadas, locais de dormida e refeições, o que me apetecia era pegar na bicicleta e voltar para casa como se voltasse do trabalho. Uma espécie de commuting mais longo, de 20 dias, com paragens para visitar amigos. Para isso foi necessário enviar toda a tralha por correio de modo a poder viajar apenas com o essencial.

A aldeia de Garrelsweer, Holanda, organiza a cada dois anos uma festa temática

Dinamarca

É difícil dizer que optei por usar a bicicleta que me acompanhou durante todo o ano, pelo simples facto de nunca ter considerado outra possibilidade. Eu não deixava de ser um estudante com limitações orçamentais num país de preços altos e o meu veículo, comprado em segunda-mão, não deixava de ser uma bicicleta de supermercado, que lá são melhores do que as de cá, embora conservem o estatuto de opção barata e de gama baixíssima.

As hesitações fizeram-me partir às quatro e meia da tarde. Deixei a residência em Aarhus onde vivi durante o ano anterior com destino a Kolding, onde ficaria em casa de um amigo. Arrancar àquela hora tardia obrigou-me a gerir muito bem o tempo e o esforço para evitar chegar de noite, muito embora o céu não escureça totalmente no verão dinamarquês durante as breves horas em que o sol se desloca abaixo da linha do horizonte. É assim que se cura a ressaca dos invernos longos naquele país, com horas de sol abundantes no verão, sem estores nas janelas, muitas vezes apenas com cortinas brancas, e acordando ao som do chilrear dos pássaros às três e meia da manhã, o que ganhava contornos mais irritantes que bucólicos quando isso coincidia com a hora a que me deitava.

Até à fronteira com a Alemanha segui pelo caminho mais directo, a estrada nacional, onde quase sempre existe sinalização para ciclistas e uma berma larga para circular. A alternativa, mais bonita, era uma das ciclovias integradas na rede nacional daquele país que atravessam a paisagem por zonas onde a civilização, embora nunca longe, não invade o nosso campo de visão de forma tão constante. A Dinamarca é conhecida por ser um país plano, o que na realidade se traduz como sendo uma espécie de Alentejo, ou um constante subir e descer ligeiros que evitam a monotonia.

Estrada agrícola na Holanda

Alemanha

Sente-se a cada esquina, em cada serviço e apoio prestado ao viajante, que a Alemanha é um país de gente habituada a viajar. No Reisezentren, um balcão que existe em todas as estações de comboios, ninguém estranhou quando pedi para comprar um bilhete até Emden com paragem em Bremen, onde planeava passar umas horas para conhecer a cidade. Viajar com uma bicicleta permite-nos chegar a qualquer sítio e conhecê-lo de uma ponta à outra em poucas horas, essa foi uma das descobertas que fiz neste regresso a casa.
Emden fica numa região fértil próxima da fronteira com a Holanda, junto ao golfo do Dollart, onde os caminhos agrícolas, feitos com placas de betão armado, estão integrados em rotas cicláveis com infografia disponível num mapa dedicado ao cicloturismo, à venda numa livraria perto de si.

Ciclistas e ovelhas cruzam-se num caminho agrícola junto à baía de Dollart, Alemanha

Holanda

A próxima vez que alguém falar na Holanda como um país perfeito para andar de bicicleta, lembre-se disto: fazer muitos quilómetros numa paisagem plana é absolutamente fastidioso. Tal como me disse uma amiga húngara que fez Erasmus em Lisboa, “agora que voltei a Budapeste percebi que aqui tenho de estar sempre a pedalar”. Pois é, as colinas também descem. Disseram-me que a costa holandesa é bonita, mas atenção, o caminho que segui não era feio, apenas plano. Qualquer vantagem que se associe a um chão plano fica sem efeito perante um vento frontal, é como subir uma montanha sem as vantagens de ver a vista lá em cima.

Em Roterdão encontrei-me com amigos de Lisboa que estavam a fazer um curso de verão e, apesar de sermos da mesma cidade, naquele momento vínhamos de cantos opostos da Europa. É difícil a um português, quando sai do rectângulo por algum tempo, disfarçar o sentimento emigrante que exalta dentro de si, apelando à cultura popular da diáspora. Foi com eles que conheci a canção de Graciano Saga que inspirou o título deste artigo, “Vem Devagar Emigrante”, a história de um regresso a Portugal que acaba em tragédia numa estrada de Espanha servia-nos de mote jocoso à experiência de estar fora do país. A Holanda é tão perfeita que chateia, até a natureza foi domesticada. Nada como uma canção dissonante para lhe dar harmonia.

Ferry-boat que atravessa a baía do Dollart, na fronteira entre a Alemanha e Holanda

Bélgica

Segui para Antuérpia, a cerca de 100 km de Roterdão, atravessando várias vezes a fronteira em Baarle-Nassau, um município onde a linha imaginária que separa as duas nações não é uma recta saída do Romantismo mas sim o resultado de vários tratados medievais que criaram enclaves belgas e holandeses dentro da fronteira maior entre os países. Vale a pena espreitar a história do local. De resto, atravessei a Bélgica com pressa de chegar à cidade francesa de Lille no 14 de Julho, grosso modo, o 25 de Abril da França.

Fronteira entre a Bélgica e a Holanda em ciclovia

França

A partir daqui comecei a usar a bicicleta apenas para conhecer as cidades onde fui parando. O país é grande e os problemas mecânicos começavam a surgir. Em 2005, as carruagens dedicadas para transporte de bicicletas nos comboios franceses ainda eram novidade, pelo que aproveitei para experimentar o serviço. Sabia também que essa facilidade desapareceria assim que atravessasse os Pirenéus.

Cidade de Gent, na Bélgica

Espanha

A minha bicicleta cruzou a Europa, levou-me a conhecer Barcelona em poucas horas e depois foi roubada. Um triste final que, contudo, resolveu o problema que seria transportá-la de comboio até Lisboa, implicando desmontar e guardá-la num saco próprio para transporte, que não tinha. A canção de Graciano Saga cumpriu-se uma vez mais, a tragédia aconteceu a um português em trânsito numa cidade espanhola e com ela foi-se a esperança de trazer aquela bicicleta para Lisboa.


1 comentário:

Aurel¡o Sintana disse...

Mt obg pela reportagem ... acho muito coragem (e tb inspirativo) fazer touring com aquela bicicleta!
Cumprimentos!